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sábado, 13 de dezembro de 2014

Estupidez

Quantas tristezas um coração já meio fodido consegue aguentar?
Todas.
Só os puros morrem de amor, como sabiás de luto dentro das gaiolas enferrujadas e apáticas.
Talvez um ou outro viúvo possa ter morrido de tristeza, mas eu acredito mais nas causas naturais.
O amor deveria ser natural, mas tem sido modificado, moldado, lacrado e vendido à quem der mais.
Penso que posso morrer essa noite
Mas não seria de amor.
Letargia mata mais do que saudade.
Amanhã eu acordo
Me odeio no espelho
Sorrio vermelho
E morro de rir.

domingo, 9 de novembro de 2014

lástimas

Eu vou me mandar daqui, meu bem.
Eu falo sério,  tão sério como uma louca desvairada decidida a deixar sua cama branca no hospício e lutar contra a prostração da alma e se arrastar até o refeitório para tentar conseguir um café com cafeína dessa vez.
 Eu vou fazer minha mala cheia de lenços,  com algum batom vermelho e dois cigarros.
Um pro adeus e outro pro até nunca mais.
Eu vou desafiar o espelho e vou dar cem mil tapas no meu próprio rosto, até marcar, até sangrar, até anestesiar a angústia e esquecer lástima por lástima de uma vez por todas.
Vou mergulhar na areia da praia, completamente bêbada, definitivamente decidida a não mais voltar
Vou contar as estrelas do imenso céu de Ipanema
Vou rir pra cada uma delas e de todas, nenhuma vai lembrar você.

Ah eu queria ir hoje mesmo
E deixar tudo isso pra lá
Mas eu queria tanta coisa, deus do céu,  eu queria tanto
Mas como posso se não posso nem ao menos levantar os quadris
A dor do trauma esfola o coração velho
O sangue corre fosco e escuro
Eu queria dominar todas as tempestades das quais me submeto
Eu queria pelo menos conseguir conviver junto com esse fantasma assombroso e inerte, que arrasta os chinelos pra lá e pra cá no corredor em cada noite de insônia.
Hoje eu odeio você.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Agosto: desgosto.

Nem é tanta coisa assim.
Só agora, depois de muito esfregar os olhos, é que vejo a coisa como um todo. Um emaranhado de nós, fios e fios se entrelaçando sem nunca denunciar onde é que está a ponta da primeira linha. Onde é que se rompeu e se entrelaçou novamente a corda. Remendos em cima de remendos, um livro inteirinho sem capítulos, daqueles que a gente se perde fácil...
Não é tanta coisa assim, é só uma... é essa coisa imensa que não cabe mais dentro de mim.
Sinto que eu deveria sentir amor, mas no lugar disto, apenas desespero.
 Desespero esmagador, no choro mudo e no soluçar violento, na cara rubra e na pele quente, no calafrio e no medo...
Sabe, meu bem... a verdade é que já não suporto mais entediar-te  tanto assim. Não suporto essa injustiça e eu morro um pouco todas as vezes que vejo a sua juventude escoar junto a minha pia cheia de louças...
 São nesses dias que essa sombra imensa se ergue na parede e me segue tão feroz, tão inabalável, como é que se escapa da sombra, pior ainda, como é que se escapa da própria sombra??
Se na luz meus medos ficam ainda mais expostos... pelo menos no escuro não vejo.
E se eu conseguisse fazer muita força, uma força capaz de mudar o mundo, capaz de reverter todas as coisas ruins... ah
Mas daí não seríamos nós.

Tinta de pele

O seu coração tropeça no descompasso do próprio samba, escuro. Porém,  sua respiração é capaz de me fazer imaginar o repouso dos anjos... Não que isso signifique muito. Nós sabemos que uma mente barulhenta não descansa, mas comete desvairos, imagina vertigens e você é uma das minhas.
Você é o gelo na barriga... e o batom dos meus lábios
é o meu esforço pra continuar acordada, e a minha vontade de te ver dormir.
Você é meu porre, minha ressaca, mas principalmente o meu delírio.
Você é minha miragem nesse deserto eterno, é uma cabana na floresta fria.
É madeira quente, com cheiro forte e lento no meu lençol
Quero sorrir tua alegria e beijar suas lágrimas
Quero te vestir assim como vestes a tinta da tua pele.

Romance em 12 linhas

Quanto tempo falta pra gente se ver hoje?
Quanto tempo falta pra gente se ver logo?
Quanto tempo falta pra gente se ver todo dia?
Quanto tempo falta pra gente se ver sempre?
Quanto tempo falta pra gente se ver dia sim dia não?
Quanto tempo falta pra gente se ver às vezes?
Quanto tempo falta pra gente se ver cada vez menos?
Quanto tempo falta pra gente não querer se ver?
Quanto tempo falta pra gente não querer se ver nunca mais?
Quanto tempo falta pra gente se ver e fingir que não se viu?
Quanto tempo falta pra gente se ver e não se reconhecer?

Quanto tempo falta pra gente se ver e nem lembrar que um dia se conheceu?

Chove na lua

A minha mente apaga pedaços do tempo
Para que eu possa seguir em frente livre da moldura de cobre que agarra as memórias
E a vida da gente passa de repente,  esbarrando em rastros de aromas que estão sempre suspensos no ar
Mas quando chega a chuva, o vento empurra pra debaixo da pele as explicações esfoladas da alma... sentimentos ja incinerados voltam a aquecer as pontas dos dedos, o coração pesa dentro do peito, e nem todo o tempo nem todo o vento do mundo é capaz de tirar de mim o fantasma do seu beijo
Seu veneno doce correndo lentamente em minhas veias me faz sentir viva.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

O mundo é um moinho

Ainda é cedo amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora de partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar
Preste atenção querida
Embora eu saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco a tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és
Ouça-me bem amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões à pó.
Preste atenção querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás a beira do abismo
Abismo que cavastes com teus pés

Cartola

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Extraordinário

Já fazia algum tempo que eu não chorava como chorei nesses primeiros minutos de uma manhã qualquer que ainda está por raiar em agosto
Nem é setembro, e já começou a doer
Aquela ferida que se abre depois de tantas partidas, foi junho ou julho do ano passado na última vez
Eu simplesmente não consigo lidar com essas despedidas toscas
Eu não sou boa o suficiente pra conseguir fazer tudo que me dá vontade e nem forte o bastante pra superar o fato de que eu nunca mais farei as coisas que deixei pra lá
"Eu não suporto te perder assim, tão cronicamente"

Agora tento tirar rapidamente esse amargo do rosto, esse sal dos olhos
Tudo anda sendo tão rápido, e eu tenho tão pouco tempo
Antes eu achava que nós tínhamos todo o tempo do mundo
Antes eu achava que poderia te ganhar com palavras
Eu acreditei que te guardei dentro do meu peito pra sempre, sempre...
Mas eu era tão tola.
E de tão burra que fui, deixei tudo isso acontecer, deixei que os dias escapassem pelos meus dedos como uma areia fina, e deixei que o vento soprasse meus barcos de papel, e que a porra das ondas apagassem o escrito de cristo na areia
Foda-se a intervenção divina
Eu não quero mais crer no extraordinário uma vez que tudo de mais extraordinário que aconteceu na minha vida
Eu perdi.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

É sobre eu e você

Linha que pena em atravessar a agulha
Eu e você.
Agulha que pena em atravessar um tapete grosso
Você e eu.

Juntos, éramos mais fortes, éramos quase invencíveis.
E por conta disso que a vida nos derrubou tanto.
Longe de ti, eu vi tudo tão embaçado. Longe, nós dirigimos em estradas diferentes e batemos os carros no mesmo lugar
De baixo da mesma lua foi que choramos baixinho, sem querer acordar um ao outro
Sem nos dar conta de que, juntos, não precisaríamos de tantas lágrimas...
Sem ao menos perceber que o outro não dormia.

Eu e você
cowboys, bandidos, heróis.
A vida foi quem nos intercalou em meio a tanto silêncio
E seus olhos em meio ao mar aberto de sentimentos
Disse tanto que me fez chorar.

É sobre nós dois embaixo daquele pé de caju
Sobre aquela mesa de bilhar
E aquele seu jeito tão meu de andar...

Eu e você
Bichos do mato, aves noturnas, seres da parte mais profunda do oceano
E nossas marcas de expressões. E nossas formas de entreabrir os lábios.
O som da sua risada paira na minha
E a lembrança do seu sorriso bobo, me olhando jogar bola com a vizinha da frente...
Apesar da dor e da saudade, do arrependimento e da culpa
É sobre amor que falo
É sobre como nunca mais te deixo morrer outra vez.

Eu te amo demais.




quinta-feira, 10 de abril de 2014

Luz da minha vida

- “... – e eu não conseguia parar de olhar para ela, e soube tão claramente como sei agora, que estou prestes a morrer, que a amava mais que tudo que já vi ou imaginei na Terra, ou esperei descobrir em qualquer outro lugar. Ela era só um eco de aroma tênue violeta e folhas mortas da ninfeta sobre quem eu rolara no passado com tantos gritos; um eco à beira de uma ravina rubra, com um arvoredo esparso sob um céu branco, folhas castanhas entupindo o leito do riacho, e um último grilo perdido em meio à relva ressecada... mas graças a Deus não era só esse eco que eu adorava.”

(Lolita)

quinta-feira, 6 de março de 2014

"Seja forte" é o que eles dizem.
Ninguém pergunta se eu quero mesmo ser forte.
Depois de tanto, tudo que eu queria era ser fraca, bem pequenininha outra vez, pra caber nos seus braços, pra olhar aquele teu rosto de baixo, e não de cima. Pelo amor de Deus, não de cima. Eu sempre fui pequena, minha mão nunca deixou de caber na sua.
E por falar em mãos, eu quero agarrar o calor dos seus dedos, aquele que deixou na minha pele na quinta feira passada.
Nós somos tão parecidos, meu bom...
Nós, agora, somos um só.

terça-feira, 4 de março de 2014

Morrer em Hospital

Outra luz vermelha se acende no balcão da enfermaria
O enfermo precisa que levem a dor embora
Outra enfermeira vem pelo corredor raspando as coxas e arrastando os sapatos de pano, antes não tinha pressa, mas agora que gritam e choram, então acelera os passinhos lembrando então uma ave gorda e inóspita, sem poder nenhum sobre a vida alheia
O enfermo quer um travesseiro, o enfermo quer poder se deitar sem sentir um ácido corroer as costelas, os pulmões, o coração e o estômago. Quer conseguir dormir, quer poder comer -Não quer nada disso, quer que levem a dor embora e só.
Os que assistem ao nebuloso espetáculo da tortura é que querem o maldito travesseiro, mas a enfermeira quer ligar na "hotelaria"
Afinal a estadia em um hospital deveria ser confortável, mas não é, nunca foi.

Outra luz vermelha se acende no balcão da enfermaria
Quer levar a dor embora, quer chorar feito criança, quer abraçar, quer desfalecer em abraços conhecidos, quer que o desobediente braço cheio de agulhas se erga aos céus e quer que Deus exista, mas vê o diabo vestido de branco, vê a morte montada em um cavalo castanho, avista ao longe um chapéu de palha, uma, duas, três, quatro crianças nascendo, uma morrendo, e sente o toque de que já não se lembrava mais, algo muito humano, algo muito surreal.
Ah não... A vida e a morte, tudo deveria ser tão mais natural.
Vivemos nos envenenando, a gente morre com gente nos enganando.
"Logo logo tá em casa."
...
..
.
E não há, Oh mundo, não há mais nada que não me faça pensar em como os animais lidam melhor com a morte do que nós.
Os elefantes quando velhos caminham em direção à morte de forma natural e tão sábia, os gatos envenenados morrem em telhados distantes e assim segue a vida, uns caem por terra, outros nascem, nunca acaba.
Porém, como uma planta seca e retorcida, alterada, manipulada, presa em um vaso com suas raízes diminutas, morremos nós em quartos de hospitais, sem muito poder fazer, sem coragem de nos entregarmos, pois estamos entre estranhos, algemados cara a cara com o desconhecido, e então sofremos, e sofremos, sofremos até que a morte nos alcance, e até que a morte consiga beijar os lábios daqueles que tem canos ou máscaras enfiadas na cara e na boca, demora demais.

Ele dormiu numa manhã de sábado, depois de tanto cansaço.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Deixa pra amanhã.

Eu que estou aqui, prostrada em meio ao nada, com tanta coisa pra fazer.
Eu que lamento a existência nos dias ímpares e celebro a vida nos pares.
Eu que perco a fé na humanidade, me entorpeço sozinha, me calo e deixo as coisas pra depois.
Eu que logo depois me recomponho e conserto meu mundo, pinto as paredes, cuido da saúde e me preocupo. Eu que não sei bem o que é que a vida pede, onde é que o vento sopra mais forte e porque é que as vezes tenho tanta sorte. Sorte ou falta dela, pois o improvável já esteve aqui tantas vezes.
Sento-me e espero que alguém me explique as fatalidades que não entendo, que o mundo me dê as coisas que eu não tenho, que o relógio e o calendário sintam pena dessa cara de domingo passado que fica por aqui embaixo dos meus olhos e nunca desaparece. Quem sabe a lua muda, eu volto atrás, quem sabe eu perdoo, quem sabe eu finalmente pego aquele voo e vou ver aquela menina que tanto quis conhecer.
Quem sabe eu deixo de ser tão presa no passado, quem sabe eu não começo a conhecer a mim mesma, pois olha só.. tudo que eu construí está guardado no armário, e todos os livros que eu li, agora já não me servem de muito.
Muito foi o que eu senti, talvez nem tanto pelas pessoas que por aqui passaram e decidiram então partir, mas talvez por mim. Sim, eu talvez seja egoísta, e egoísta pra caralho mas eu realmente senti muito.
E agora eu já não posso escalar, muito menos cair. Uma profundeza me aguarda cheia de sonhos e outra cheia de pesadelos, mas tenho um filho pra ter, e mais um monte daqueles mesmos livros pra ler.
 Amanhã passa, amanhã eu paro de deixar pra depois.

Chuvas de junho

Trazia no centro do lábio um corte finíssimo, embebido de sangue, como quem muito já mordeu a si mesma.
Aquelas mordidas distraidas em meio a aflições, o desconforto de não poder confiar nas próprias decisões, a vergonha escorrendo dos olhos.
Lágrima
Pinga
No
Corte
Da
Boca.
 Ah, pudera ter escolhido, ao menos entre a escuridão e o breu total.
Amarras me prendem dentro do meu próprio cárcere cheio de dúvidas
E aquele ano que já passou tão convicto e transbordando de mim, se transformando bruscamente em lembranças esfoladas de delicadezas não concedidas, sutilezas despercebidas e foi debaixo daquela chuva de junho, quando me apunhalastes enquanto beijava no meio da boca e entre os meus seios, e  a gritante magreza de quem morre sem fazer muito alarde, nossos ossos se roeram todos e eu desapareci assim, sem tanta manchete.
 É que eu nunca soube anunciar minha dor de maneira elegante, entende o que eu te digo?
 Elegante é a forma que você segura o cigarro e a forma como prende os cabelos, sendo esta também uma forma de anunciar a sua morte.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

À minha criança:

Que a paciência não me falte nem mesmo nos momentos em que o sangue parece ferver em minhas veias.
Que eu saiba acolher teus medos e segurar tuas mãozinhas mesmo quando não couberem mais dentro das minhas.
 Que a vida seja sempre bonita pra nós, que onde quer que estejamos, eu nunca queira partir.
Que meu sustento te bote de pé, que a força de teus olhos sejam capazes de mover montanhas, e que eu nunca deixe de te mostrar o quanto o mundo pode ser cada vez melhor.
Que você sempre saiba que estarei aqui, por ti, e que as muralhas sejam tão menores que tua capacidade de sonhar.
E mesmo nos dias frios, mesmo nas noites assustadoras, eu vou te proteger de tudo, pois você me protegeu de mim.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Diálogo de domingo

 Quase não tínhamos livros em casa e a televisão sempre gritava alto demais.
 Pessoas que eu não conhecia comiam conosco na hora do jantar, dançavam sem nenhuma expressão de arte - e isso eu sabia muito antes de saber o que era a arte- dormiam e acordavam bonitas, com o rosto pintado.
 As crianças, eram sempre saudáveis e limpas. Pateticamente limpas.
 Toda essa vida se passava dentro da televisão, tomando as nossas vidas. E logo eu, um menino tão cheio disso. Dessa coisa, que chamam de vida. Não, não que em justa meia dúzia de anos de idade eu saberia lhes falar sobre a vida com tanta exatidão, mas garanto que sabia muito mais do que aquela gente, os modelos de vida da televisão.
  Foi assim que reparei que a casa era triste, os diálogos eram de plástico, a minha mãe olhava com uma melancolia única para o espelho.
 Todos nós ainda éramos jovens, o meu pai, minha mãe e eu. Ainda assim, tanta coisa cinza preenchia os dias naquela casa.
 Por mais que não existisse motivos aparentes para viver: viviam. Por algum raio de motivo se levantavam logo cedo, bem cedo mesmo. Palavras eram balbuciadas em meio ao sono enquanto se forrava a gaiola do passarinho com jornal. Até então eu não conhecia outra finalidade para o papel fino, mas de todos nós, o passarinho era o melhor. Conseguia ser mais triste, e isso o tornava melhor. Melhor porque sabia sentir, e sentia com tanta intensidade que seu canto era pranto, os olhinhos brilhantes de sabe-se-lá-o-quê me olhavam, e olhavam para o jornal, e descobri que de tantos, ele era o mais sábio. Ao menos, tinha o jornal.
  Passam-se alguns anos, aquele prisioneiro veio a falecer numa manhã de domingo enquanto eu era violentamente acordado com repetidas pronúncias do meu nome, brotavam da garganta do meu pai e se entalavam dentro do meu ouvido. Íamos a igreja.
 Ninguém deu importância pro corpinho que desfalecia na gaiola, pois todos eram apressados demais, atrasados demais e a culpa era minha. Eu dormi demais. Sonhei demais. Sonhara com dias tão melhores, tão distantes....

  Cresci, me tornara homem. Não, não desses homens como meu pai, pois meu pai dizia entender de religião e política, mas não entendia o fascismo, a origem dos preconceitos, a invasão contra privacidades, a origem do pudor, dos pecados e preconceitos. Não entedia nada.
 Por minha vez, nunca fui entendido. Fui entediado. Apesar da infância cinza, eu amei, mas amei em silêncio. Amei Camila, da escola. Mas nunca a contei. Amei os Beatles, e nunca cantei. Amei os livros, nunca os cheirei. Amei tanto! Os rios, os mares, as cordilheiras dos Andes! Amei o Grand Canyon e os filmes de velho Oeste. Amei tanto, tanto o cheiro da grama e o azul do céu. As constelações que dançavam como se deve dançar. Até aquele pobre pássaro, eu amei. Mas não o libertei e isso me aflige tanto todas as vezes, quando me sento no parque e ouço o cântico dos livres.   
 Tento entender um pouco das coisas.
 Tentei arduamente imaginar a imagem de meu pai antes de se tornar o homem amargo debruçado em cima do piano, será que era como eu? -um arrepio me gela a espinha- Imagino então uma carcaça se formando sobre meu corpo, e como se eu pudesse enxergar minh'alma, via um pequeno feixe de luz se apagando, diminuindo, até virar uma diminuta pedrinha verde, caída sob escombros e muralhas, barreiras de tijolos e quadro enormes portões enferrujados. Tudo aconteceria tão rápido e eu não veria mais o mundo que vejo, mas seria eu merecedor desse mundo, uma vez que nunca andei descalço sobre a terra vermelha? Deixei marcas no mundo, mas fui egoísta o suficiente para não deixar que o mundo me marcasse.
 Não há cicatrizes nos joelhos, nem nunca houve um braço quebrado.
 O medo de me tornar como meu pai passara agora a me tomar por completo, e eu não sabia por onde fugir.
 Certo domingo, desses corriqueiros, onde passarinho morre e ninguém se importa, eu estava com tanto medo de me perder do mundo e da minha alma, que minhas mãos tremiam.
  Havia pressão no meu ouvido, as luzes da casa eram tão iguais.
  Poupo seu tempo de te contar sobre como o tapete era empoeirado da mesma maneira, a televisão ligada da mesma maneira, a janela da cozinha pacata e ordinária, sempre do mesmo jeito. Basta que você imagine o lugar mais igual do mundo.
  Foi então, como de costume, quando meu pai mastigava a comida de forma boçal e tão igual, nunca olhando para mim ou para minha mãe, com os olhos fixos na televisão, enquanto se passavam notícias da tarde, que cheguei no meu limite.
 Meu pai com todo o desdém de quem fala consigo mesmo e não conosco, xingava qualquer coisa, tateava a mesa para encontrar o controle remoto e mudar para o futebol.
 Anunciava: fodam-se os médicos cubanos. -E a voz da repórter foi cortada como quando se passa uma navalha por um fio de cabelo-.
 Preguei num movimento único o garfo pesado na mão de meu pai, o sangue escorreu uniforme e brilhante. Brotava em forma de pequenas gotinhas justamente do tamanho dos olhos do canário falecido e se transformavam em pequenos riachos vermelhos.
 Foda-se você pai, foda-se VOCÊ.
 Minha mãe sorriu pra mim pela primeira vez.